28.5.05

CARTA A CAMILO CASTELO BRANCO

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Assim o exemplo aduzido por V. Ex.a., para demonstrar o meu escandaloso hábito de implicar consigo — é realmente mal escolhido. Mas permanece, todavia, a queixa, feita ao público com tanta rabugem e tanto azedume, de que — eu e os meus amigos, sempre que isso vem a talho de fouce, lhe assacamos aleivosias.

Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e único dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa — “maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.”

Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Ex.a. quer muito simplesmente queixar-se de que eu e os meus amigos o não consideramos um escritor tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras portuguesas como o costumam considerar os amigos de V. Ex.a.

Ora aqui V. Ex.a. se ilude singularmente.
Eu nunca tive, é certo, a oportunidade deleitável de apreciar, nem em copioso artigo, nem sequer em curta linha, a obra de V. Ex.a.


Mas sou meridional, portanto loquaz.

Por vezes, entre amigos e fumando a cigarette, tem vindo “a talho de fouce” conversar sobre a personalidade literária de V. Ex.a.

E, louvado seja Apolo aurinitente, sempre me exprimi sobre o autor do Esqueleto, de um modo que é irrecusavelmente mais digno dele e da sua obra, do que esse outro estranho modo por que o costumam decantar aqueles que se ufanam, já na palestra, já na imprensa, de serem seus amigos e seus discípulos.

Porque eu, falando de V. Ex.a., considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte de composição, a fraqueza ou força do seu traço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Ex.a. o ardente satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia, o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular.

E os seus amigos, esses, admiram apenas em V. Ex.a., secamente e pecamente, o homem que em Portugal conhece mais termos do dicionário!

Sempre, “a todo o talho de fouce”, em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, V. Ex.a. é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado — como o grande homem do vocábulo, esteio forte de prosódia, restaurador da ordem gramatical, supremo arquiteto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de V. Ex.a. o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante!

(...)

A V. Ex.a, crítico sagaz de si mesmo, melhor compete avaliar o que, neste vale de prosa e lágrimas, tem feito para merecer que os seus amigos, como os amigos de César no dia das lupercais, teimem em lhe enterrar até aos ombros esta dupla e pesada coroa da vernaculidade e da descompostura.

A mim só me compete lamentar que a estas mofinas proporções tenha sido reduzida, pelo zelo crítico dos seus amigos, a larga individualidade que nos deu o Amor de Perdição. Mas ao mesmo tempo adquiro o direito de rogar a V. Ex.a. que, quando se queixar aos ventos e ao Chiado das pessoas que implicam consigo, como V. Ex.a. diz, ou que desdouram a sua glória, como eu traduzo, não se volte para mim e para os meus amigos — mas olhe em torno de si para os seus admiradores, e para dentro de si mesmo, talvez.

A guerra de realistas e idealistas, causa primordial destas explicações, tornou-se já quase tão desinteressante e cediça, meu prezado confrade, como a guerra dos clássicos e românticos, a das Duas Rosas, ou essa outra que, para vantagem única dos livreiros que editam Homero, dous povos semibárbaros tiveram a paciência de arrastar dez anos em torno de uma vila da Ásia Menor murada de adobe e tijolo.

Renovar tão antiquada guerra nas gazetas, é já um ato imperdoavelmente provinciano; mas mais provinciano ainda é estarmos nós aqui, com grãos de incenso nas mãos, e pedras nas algibeiras, fazendo, através do grande mar, mútuas e lentas mesuras.

V. Ex.a., de lá, dentre os seus sinceros arvoredos minhotos, ajanota as suas frases pelos figurinos de Filinto Elísio, para me dizer gaguejando, e com agridoce generosidade: “O meu caro amigo tem muito talento, com exceção de escrever muita tolice”. E eu de cá, mais pérfido, porque habito as cidades, grito sem gaguejar, e com polida efusão: — “E o meu caro amigo tem ainda muito mais, sem exceção absolutamente nenhuma”.

É infantil. Antes desperdiçássemos o nosso tempo, preguiçando patriarcalmente, neste doce calor de junho, sob a figueira e a vinha... Mas quê! V. Ex.a., que estava brincando funebremente, a fazer no soalho, com tochas de fósforos, uma procissãozinha de moribundos, ergue-se de repente, corre para o público, mesmo sem tirar o babeiro, e acusa-me, entre lágrimas de furor, de estar sempre a implicar consigo!

Que havia eu de fazer, eu inocente e justo? Corro também para o público, mesmo de jaquetão de trabalho, e brado profusamente com as mãos sobre o peito: “Nunca! É falso! Jamais impliquei com ele, e não lhe quero senão bem!”

A culpa de toda esta inútil prosa é portanto toda sua; e para que ela se não prolongue mais, apresso-me, prezado confrade, a dizer-me

De V. Ex.a.Sincero e antigo admirador

Eça de Queirós"


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