Desde a arcada até ao paraíso
A vida é um desempate permanente, e o que é preciso é jogar com limpeza e formosura em cada número da caprichosa roleta...”
Miguel Torga
"Eu nunca acreditei no Diabo - como nunca acreditei em Deus.
Jamais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes públicos, encarregados de manter o respeito por tais entidades:
mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substância, rivais bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amáveis, - um de barbas nevadas e túnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Luís XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa imitação burguesa do pitoresco Plutão - não acredito.
Não, não acredito! Céu e Inferno são concepções sociais para uso da plebe - e eu pertenço à classe média.
Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores:
porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do senhor deputado; igualmente para me subtrair à tísica, à angina, à navalha de ponta, à febre que vem da sarjeta, à casca da laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males públicos, necessito ter uma protecção extra-humana.
Ou pelo rapapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações, desde a Arcada até ao Paraíso.
Com um compadre no bairro, e uma comadre mística nas alturas - o destino do bacharel está seguro."
eça de queirós
bvtana
1 Comments:
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