1.8.06

No bronze da sua glória



Lisboa


A luz vinha devagar
Através do firmamento...
Vinha e ficava no ar,
Parada por um momento,
A ver a terra passar
No seu térreo movimento.

Depois caía em toalha
Sobre as dobras da cidade;
Caía sobre a mortalha
De ambições e de poalha,
Quase com brutalidade.

O rio, ao lado, corria
A querer fugir do abraço;
Numa vela que se abria,
E onde um sorriso batia,
O mar já era um regaço.

Mas a luz podia mais
Voava mais do que a vela;
E o Tejo e os areais
Tingiam-se dos sinais
De uma doença amarela.

Ardia em brasa o Castelo,
Tinha febre o casario;
Cada vez mais nosso e belo,
O profeta do Restelo
Punha as sombras num navio...

Nas casas da Mouraria,
Doirada, a prostituição
Era só melancolia;
Só longínqua nostalgia
De amor e navegação.

Os heróis verdes da História
Tinham tons de humanidade;
No bronze da sua glória
Avivava-se a memória
Do preço da eternidade.

Nas ruas e avenidas,
Enluaradas de espanto,
Penavam, passavam vidas,
Mas espectrais, diluídas
Na cor maciça do encanto.

E a carne das cantarias,
Branca já de seu condão,
Desmaiava em anemias
De marítimas orgias
De um fado de perdição.


Miguel Torga


guido sarrasa

1 Comments:

At 11:07 da manhã, Anonymous Anónimo said...

imponente - o Torga , a fo tografia, o título, Lisboa, a magnifica Lisboa, enfim

jmn

 

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