1.11.06

A História de Portugal por Napoleão Bonaparte

"A raça humana é governada pela sua imaginação"
Napoleão Bonaparte


(Parte II)

«O navio francês Saint Jacques, confiado no direito das gentes, entrou no porto de Santiago, contando achar ali amizade e protecção da parte dê uma nação que não nos havia declarado guerra: foi aprisionado, confiscado e vendido. Portugal mandou depois os seus exércitos para nos combaterem nos Pirinéus: juntou os seus navios aos das esquadras inglesas, e apresentou-se mais declaradamente no número dos nossos inimigos.

Depois da paz de Campo Formio Portugal receou que os exércitos franceses se dirigissem para as suas fronteiras, atravessando o território espanhol. Enviou um embaixador a Paris, que concluiu e assinou um Tratado definitivo, mas o Governo português recusou ratificá-lo, e essa recusa devia naturalmente aumentar o rancor já produzido pela guerra entre as duas nações. Portanto viu-se desde essa época que as esquadras portuguesas cruzaram diante de Malta e de Alexandria: e lembra-nos que o general do exército do Oriente, à vista dos navios portugueses, declarou na ordem do dia do exército que chegaria tempo em que a nação portuguesa havia de pagar com lágrimas de sangue a afronta que fazia à República francesa.

O Tratado de Luneville, que pacificou o continente, dava ocasião de se obterem do Governo português as satisfações que havia direito de lhe exigir. Concluiu-se em Madrid uma convenção entre a Espanha e a França, pela qual se estabeleceu que Sua Majestade o Rei de Espanha e a República francesa formariam um exército combinado para obrigar Portugal a desligar-se da aliança com a Inglaterra, e a deixar que as tropas espanholas e francesas ocupassem a quarta parte do seu território até à paz definitiva.

Esta convenção não tinha por fim satisfazer um vão sentimento de orgulho, ou simplesmente vingar ofensas, que verdadeiramente deixam de existir desde que é possível castigá-las; mas era uma parte da vasta combinação política, que se ligava desde o Báltico até ao Hanover, do Hanover até aos confins de Otranto, e cujo laço comum era a paz geral.

O Governo francês cumpriu as suas promessas: uma divisão com artilharia numerosa atravessou os Pirinéus comandada pelo general Leclerc. O general Saint-Cyr, oficial de mérito distinto, foi mandado para junto do general espanhol para concertar todas as operações de guerra.

Começaram as hostilidades mas depois de duas ou três escaramuças, em que se empenhariam quatrocentos ou quinhentos homens de parte a parte, o general espanhol concluiu em nome do seu Governo o Tratado ele Badajoz, em que lhe esqueceu de exigir o primeiro e principal interesse da Convenção de Madrid.

O Primeiro Cônsul fez saber imediatamente, que da sua parte não podia ratificar o Tratado de Badajoz; que esse acto era contrário à política geral e ao interesse dos aliados: que estava em oposição formal com a convenção de Madrid; e que a consequência imediata deste Tratado para S. M. C., resolvendo-se a ratificá-lo separadamente, seria a perda da Trindade. O Gabinete de Madrid passou avante, ratificou separadamente o Tratado de Badajoz, e assim sacrificou a Trindade.

Depois da pacificação de Espanha continuámos a ficar isolados muitos meses em guerra com Portugal. Teríamos empreendido e realizado sós o que pela Convenção de Madrid a Espanha devia fazer de acordo connosco; haveríamos obtido, até à paz definitiva, a ocupação da quarta parte do território português; mas os acontecimentos precipitaram-se, as negociações começadas há muito em Londres, chegavam à sua madureza; o Governo deu as suas ordens, e assinou-se a paz com Portugal dois dias antes da assinatura dos preliminares em Londres.
O Governo francês procurou regular com Portugal as nossas relações comerciais de modo útil a ambas as nações, e fixar pelo Tratado os limites entre a Guiana francesa e a portuguesa, com bastante cuidado para prevenir qualquer contestação futura. Para conseguir o primeiro objecto pediu a Portugal a reciprocidade, que este não podia recuar sem prejuízo de seus próprios interesse.

Todas as nações precisam mais ou menos umas das outras; e quer tenham de comprar quer tenham de vender, nada lhes convêm mais que chamar aos seus mercados o maior número de compradores e vendedores. Qualquer monopólio ou privilégio exclusivo em proveito de alguma nação nos mercados de outra, não prejudica somente às mais nações que afasta desses mercados, mas ainda à que o concede pois lhe tira o recurso de achar pela concorrência preços mais vantajosos.

As disposições do Tratado são portanto conformes aos princípios por que têm de se dirigir todas as nações comerciantes, e se essa, disposições devem operar felizes mudanças nas nossas relações comerciais com Portugal, as duas nações devem igualmente congratular-se.Quanto aos limites entre as duas, Guianas, podemos dizer que a Convenção do 1700 os fixou no rio Amazonas, visto que os Portugueses se obrigaram por esta Convenção a derrubar todos os fortes que tinham na margem esquerda daquele rio; o Tratado de Utrecht determinou-os posteriormente de um modo incompleto, cheio de contradições, e que originou controvérsias continuadas até agora.

A Guiana francesa é a colónia que unicamente nos resta no continente da América, enquanto os ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses ali possuem vastos e ricos estabelecimentos, considerados por eles como valioso meio de prosperidade.

Caiena, porto principal da ilha deste nome, é a capital da Guiana francesa. Diminuída pela cultura a insalubridade do clima, bem conhecida a navegação para aquela colónia, já o seu nome não causa terror. Acham-se aí naturalizadas as mais ricas produções da Ásia e dos seus arquipélagos, às quais a transplantação deu uma vegetação mais abundante, mais vigor e fecundidade que no seu país natal. A Guiana cria gados, madeiras e outros produtos com uma abundância que só tem por limite o número de homens que se pôde empregar nos trabalhos e na guarda dos rebanhos.
Além de cem léguas, partindo da beira-mar pouco se conhece desse país que ainda não experimentou a cultura: encontram-se nele dispersas algumas tribos de nações selvagens, que se têm afeiçoado aos franceses, porque as havemos tratado com humanidade e brandura: negociámos com aqueles selvagens, esperando que os progressos da cultura elevem o valor das terras interiores da Guiana.

Esta colónia está longe de um estado de prosperidade: mas não deixa por isso de ter grande importância para nós, quer a consideremos em relação aos socorros que pode prestar a Caiena e às outras nossas colónias, quer a contemplemos como um país novo, destinado a receber no futuro os nossos concidadãos, que por desejo de fortuna, pelas desgraças, ou pela inquietação natural de muitos homens, se afastarem da mãe pátria.

Seria erro pensar que os Europeus não podem habitar a zona tórrida; o Amazonas, o maior rio do universo, serpenteia paralelo à equinocial, a dois ou três graus sul desta linha, com que se confunde na sua foz; e Lacondamine, que lhe percorreu todo o curso, não achou o calor insuportável. Este modifica-se à proporção que se entra nas terras altas, e a beleza do país dá-nos a esperança de fundar ali realmente uma colónia importante.

De certo que só com poderosos auxílios chegarão a realizar-se estas esperanças; mas primeiro que tudo era conveniente determinar os limites ainda incertos da colónia.

Se no Parlamento inglês se levantou discussão sobre os meios de conciliar esta demarcação com o Tratado preliminar concluído entre a França e a Inglaterra, que aceita a integridade das possessões portuguesas, não pode esta discussão fazer surgir sérias dificuldades; é evidente que a cláusula do Tratado preliminar não se referiu senão à invasão de que Portugal estava ameaçado pelo exército francês, que se achava nas suas fronteiras.

Não pode, além disto, aplicar-se esta cláusula à determinação de limites, que tem sido constantemente discutida. Importava a Portugal e à França prevenir toda a contestação futura; e não se pode, sob nenhum aspecto, considerar a disposição que tem por fim este objecto, como um ataque à integridade do território de Portugal.

Enfim, a única vantagem para a França será possuir sem contestação um território que está hoje inculto, mas que pode, pelo, cuidados e protecção de um Governo ilustrado e sempre cuidadoso da prosperidade pública receber prontos e grandes melhoramentos, sem causar inveja nem saudades a Portugal, a quem fica muito mais território do que pode cultivar.

As novas relações entre os dois países tornar-se-ão mais activas; as recíprocas vantagens que delas tirarem concorrerão para aproximar dois povos destinados a estimarem-se e amarem-se; e Portugal recobrará na Europa a posição que convêm a um estado que deve zelar a sua independência e prosperidade.

Em vão pretenderiam alguns homens, animados por antigas paixões e insensíveis aos clamores da humanidade, ver prolongar uma guerra que já custou sangue e tesouros à Europa; os seus murmúrios não prevalecerão sobre a sabedoria que, enfim, preside nos conselhos dos Governos.

Podemos esperar que dentro em pouco um último Tratado porá termo a todas as desgraças da guerra, e que Tratados fundados na justiça e no interesse comum assegurarão por largo tempo os inapreciáveis benefícios da paz.»



crisdovale