2.8.04

CONTOS EXEMPLARES

“Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa…”
Álvaro de Campos


“…e quando entrávamos no bar um homem, sempre o mesmo, voltava-se no banco alto e, trazendo o seu copo, vinha sentar-se connosco numa mesa.
E era difícil dizer de que tempo ele vinha; pois das personagens das histórias dum tempo antigo ele tinha a voz, o olhar e os gestos, mas não o destino nem a vida vivida. Era mesmo como se ele tivesse rejeitado todo o destino, toda a vida vivida, como uma coisa alheia, exterior e falsa, e lhe bastasse aquele momento, aquele bar, aquela conversa, aquele copo.
Era como se ele tivesse querido guardar o seu ser à margem do vivido, por não haver na vida acto nenhum onde o ser pudesse ser cumprido e a existência concreta fosse apenas deturpação, falsificação, profanação.
E assim ele tinha resolvido usar a sua própria vida como não sendo dele, usá-la como os músicos da orquestra usavam os seus fatos alugados.
………….
E o homem que se tinha vindo sentar junto de nós falava misturando as suas palavras com o tempo, com a noite, com o barulho do mar, com o respirar da brisa nas folhagens. E das suas palavras nascia uma grande imagem que se ia abrindo e desdobrando em inumeráveis espaços.
A sua sensibilidade era tão perfeita que até na própria madeira da mesa a sua mão pousava com ternura. Enquanto falava abria espantosamente os seus olhos, que eram azuis como o azul duma chama de álcool. E o seu olhar era desmedido e impessoal como se para além de nós ele olhasse outra coisa. Talvez:

A memória longínqua duma pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos
E à medida que ia falando, a imagem que nascia das suas palavras ia-se tornando interior à alma daqueles que o escutavam, como um mito. Ele era como um limite como um marco que dissesse:
Daqui em diante o mar não é mais navegável.

No entanto ele não se confundia com um deus. Nos deuses ser e existir estão unidos.
Nele a vida vivida nem sequer era serva do ser, nem sequer era o chão que o ser pisava, mas apenas acaso sem nexo, desencontro, acidente sem forma e sem verdade, acidente desprezado.
……….
Ele esteve um longo tempo calado. Depois debruçou-se sobre a mesa e disse:
………….
There is a sea,
A far and distant sea
Beyond the farthest line,
Where all my ships that went astray
Where all my dreams of yesterday
Are mine.

Lá fora as lâmpadas das ruas já se tinham apagado havia muito tempo.
……….”

Sophia de Mello Breyner Andresen (personagem inspirado em D..José Zarco da Câmara, Conde da Ribeira Grande)

Bruno ventana