31.8.04

MY LITTLE RICH HOUSE

“Indeed, it seems to me that brutality in war is more the norm than the exception, and more to do with circumstances than with character.(…) As we still see in many parts of the world, the object of hatred could also be people belonging to another tribe or of a different race. The task of propaganda is to shape this difference so that it creates a feeling of threat from the other side and strengthens the urge for homogenisation.”

Slavenka Drakulic, “They Would Never Hurt a Fly”


Michael Moore empenhou-se a fundo para retratar a “nação idiota”, como ele próprio reconhece, e personalizá-la em George W. Bush. O Presidente Americano, na verdade, nem precisava de Michael Moore se desse ao trabalho de o revelar, pois não há memória de uma única declaração de Bush que não prime pela nulidade. Ao melhor estilo “cada tiro, cada melro, cada cavadela, cada minhoca”, há muito que Bush deixou de ser levado a sério (chegou a sê-lo?), ao menos do lado de cá do Atlântico.

O filme de Moore não é, todavia, desprovido de novidade. É, até, obrigatório. Consegue ter ritmo, graça e conquistar o seu lugar no centro dos debates sobre a política americana. Mas não é sobre política americana, mas sobre Bush que Moore quer falar. Desdobra-se em tentativas de dar voz ao cidadão comum, para demonstrar o descontentamento americano: a mãe que perde o filho na guerra, o velhote acossado pelo FBI numa versão SS, o soldado máquina de guerra, contrastando com o soldado ingénuo, os amputados...aparecem depois uns quantos investigadores, técnicos, especialistas, raramente identificados e que dão a sua colher de chá na sustentação da tese conspirativa que perpassa o filme. A coroar, a crítica à classe política, e aí sim, Fahrenheit roça a genialidade, como quando Moore convida os congressistas a dar o exemplo, enviando os seus filhos para o Iraque.

Mas Moore não consegue escapar à tentação de se auto-proclamar o novo herói da América. Com um travozinho Bloco de Esquerda, lá aparece Moore numa carrinha branca a ler o Patriot Act, com megafone (talvez umas farturas?). Por vezes, fraqueja mesmo e quase pisa o terreno do patético, ao tentar vender a cena do recrutamento de soldados no parque de estacionamento de um centro comercial.

Farhenheit 9/11 é por isso, uma mistura de Forrest Gump, Wag the Dog e o filme que Kenneth Starr gostaria de ter feito sobre Clinton. É isto que aos olhos do americanos deverá passar despercebido: o problema não é tanto Bush, mas uma cultura de quase divinização do ideal americano. Moore podia ter ido mais além e explorado a figura de Saddam, que é referido en passant quase como um pacífico líder do Médio Oriente. Podia ter ido mais além e não insistir no erro de ignorar a existência da Europa, como faz ao retratar a coligação. É que o relativismo dos Estados Unidos não se deve a Bush e à Arábia Saudita. Pelo contrário, e esse é o verdadeiro calcanhar de Aquiles do filme, deve-se, paradoxalmente, ao enraizado chauvinismo americano.
Aí sim, Moore derrapa e dá um tiro no pé. Se Bush instrumentaliza as instituições de forma tão vil como é insinuado (afirmado?), como é que Moore conseguiu levar a cabo tamanha empresa?
Na América, responderão que assim foi, porque Moore é um herói. Na Europa, percebe-se que o filme poderia ter sido feito, com boa-vontade, sobre qualquer Presidente Americano.

Confirma-se, pois, que também há mandarins na América.

Avalon