"SE FOR POUCO O VINHO BEBA EU DIANTE
(QUE QUEM LEVA A PRIMEIRA NÃO FICA SEM ELA)"
"Aqui ofereço a V. Excelência uma conversação de amigos bem acostumados, umas noites de Inverno melhor gastadas que as que se passam em outros exercícios prejudiciais à vida e consciência; finalmente uma Corte que, como bonina do mato, a que falta o cheiro e a brandura das dos jardins, ainda que na aparência e cores a queira contrafazer, é contudo diferente. Se os ditos destes aldeãos cheirarem a Corte, acreditarão o título do livro, e, se souberem ao monte, também nele se confessa por Corte da Aldeia;
(...)
Perto da cidade principal da Lusitânia está uma graciosa Aldeia que com igual distância fica situada à vista do mar Oceano, fresca no Verão, com muitos favores da natureza, e rica no Estio e Inverno com os fruitos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente; porque com a vizinhança dos portos do mar por uma parte e da outra com a comunicação de uma ribeira que enche os seus vales e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do ano o que em diferentes lugares costuma buscar a necessidade dos homens; e por este respeito foi sempre o sítio escolhido, para desvio da Corte e voluntário desterro do tráfego dela, dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos ou heranças, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da Cidade.
Um Inverno em que a Aldeia estava feita Corte com homens de tanto preço que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior deles em casa dum antigo morador daquele lugar, que também o fora em outra idade da casa dos Reis, donde, com a mudança e experiência dos anos, fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida; grande acerto de quem colhe este fruito entre desenganos. Ali, ora em conversação aprazível, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de Novembro e se amparavam contra os frios rigorosos de Janeiro.
Entre outros homens que naquela companhia se achavam eram nela mais acostumados, em anoitecendo, um Letrado que ali tinha um casal e que já tivera honrados cargos de governo da justiça na Cidade, homem prudente, concertado na vida, Doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade; um Fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria, em cujas histórias estava bem visto; um Estudante de bom engenho, que, entre os seus estudos, se empregava algumas vezes nos da poesia; um velho não muito rico, que tinha servido a um dos grandes da Corte, com cujo galardão se reparara naquele lugar, homem de boa criação, e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante."
Francico Rodrigues Lobo (Corte na Aldeia)
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