4.8.05

A COISA MAIS CARICATA QUE JÁ SE VIU

"...com o lápis atrás da orelha, com suspensórios estivais..."



"Na terça-feira, o presidente da República recebeu dois putativos candidatos a Belém, ou seja, a ocupar-lhe o cadeirão.

Cavaco e Soares foram a Belém. A visita de Soares foi anunciada com antecedência. A de Cavaco não foi anunciada.
A de Soares teve direito à presença do próprio diante das câmaras; a de Cavaco, pelo fresco da manhã, foi conhecida apenas depois de Soares sair de Belém.
Cavaco foi a Belém falar com Sampaio; Soares foi a Belém "para ouvir o presidente".

Para os apoiantes de Soares, como o Vítor Ramalho, as duas visitas traduzem personalidades opostas.
Nada mais exacto.

Ramalho diz que Cavaco foi a Belém em silêncio porque é uma personalidade mais comedida; e que Soares, pelo contrário, faz as coisas "à vista de todos".
Nada mais inexacto.

Soares faz à vista de todos o que lhe convém, razão porque as duas visitas a belém resultaram numa espécie de KO técnico de Cavaco sobre Soares, e num KO absoluto de Sampaio sobre a tentativa de Soares comprometer o presidente no seu "período de reflexão".

Fiquei surpreendido e não esperava tanto; Sampaio foi corajoso e claro.
Não deu ponto sem nó recebeu Soares mas, depois, disse que já tinha recebido Cavaco.

Aliás, o "período de reflexão" de Soares é a coisa mais caricata que já se viu.

Primeiro, ludibriou Manuel Alegre.

Depois gritou, em surdina (mas gritando), para o país:
"Senhores, estou em período de reflexão."
Como se dissesse:
o país deve calar-se, não deve dirigir-me a palavra com perguntas incómodas, passem a andar em bicos de pés, não arrastem cadeiras nem assobiem nos corredores; estou em "período de reflexão".

Nunca se viu reflexão mais barulhenta nem mais sonoro abrir e fechar de portas, com o estrondo de um vulcão.

A ideia seria excelente:
que o país assistisse, de bruços, à reflexão do velho presidente, que decidiria, no meio desse rumor expectante, se regressa para pôr em sentido a Direita e para disciplinar a Esquerda, "unindo os portugueses".

O país acordaria para comprar os jornais à procura da decisão de Soares nas primeiras páginas, assistiria aos telejornais, ansioso por perceber se Soares já terminou a sua reflexão e se tinha, ou não, conseguido o apoio de empresários, académicos, banqueiros e artistas de teatro.

Depois todos gritaríamos, em uníssono, "Soares é fixe" e partiríamos para os arraiais de campanha. Durante 15 dias, um mês, o país ficaria suspenso, nos areais do Algarve ou em luminosas esplanadas do Minho, aguardando o desenlace desse "período de reflexão".

E, sentado numa varanda, à sombra, contemplando mapas, sondagens, rodeado de telefones e de blocos de apontamentos, com o lápis atrás da orelha, com suspensórios estivais, Soares decidiria o que fazer com este país que periodicamente ensandece mas que, chamado à pedra, demonstra que o não esquece, cheio de gratidão.

É exactamente isto que não pode acontecer.
Não é por si, Dr. Soares, que me merece respeito e seriedade:
é pelo país, que precisa de crescer e de deixar de depender de todos os pais e padrinhos.

O senhor, Dr. Soares, admito, gosta do país. Tem por ele, até admito ainda, uma inestimável e diabólica ternura. Por isso mesmo, deixe-o crescer. Deixe-o cometer disparates. Eu sei que a maioria absoluta de José Sócrates é capaz de ser um problema para o senhor.

Mas nós, portugueses, somos assim, incompreensíveis e idiotas:
tanto o elegemos a si, para manifestar a nossa inteligência, como damos maiorias a Cavaco e a Sócrates para exibir a nossa incompetência.
Somos um caso perdido.

Reflicta sobre isso, entretanto."



Francisco José Viegas

(escreve no JN,
semanalmente,
às quintas-feiras.)


brventana

1 Comments:

At 12:08 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Como diria La Fontaine "o cachorro está muito orgulhoso da coleira que usa ao pescoço" in "O cachorro e o lobo".
PP

 

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