12.10.04

PALÁCIO DO MANTEIGUEIRO À HORTA SECA

“Duas horas de sala de armas, alguns minutos de cabeleireiro e de clube, um bom alfaiate, uma ponta de desdém, e certo ar fatigado de quem esperdiça a vida sem lhe saborear dos proventos, bastarão para dar o elegante.” (Fialho de. Almeida)


A casa é de bom gosto e aspecto sólido, deixando transparecer a marca da época.
De 1787, o seu proprietário original foi Domingos Mendes Dias, aguadeiro, marçano, “negociante da praça de Lisboa”, comerciante de manteigas por grosso e, depois, milionário, deixando por morte seis milhões e meio de cruzados.

Querendo mostrar-se fidalgo, obteve do Morgado de Vilar de Perdizes, António de Sousa Pereira Coutinho, o tratamento de primo, prometendo em troca deixar-lhe em testamento palácio e fortuna.

Entrou assim o palácio do Manteigueiro na posse do Morgado.
Pouco tempo depois, em 1804, o palácio foi cedido ao Conde da Caparica e, seis anos mais tarde, o Conde da Feira, ao tempo Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, determinou que a casa ficasse á disposição do coronel Peacock.

Outro morador, posterior, foi o célebre Marquês de Lille, embaixador da França de Napoleão III, no tempo em que no dizer de Tinop, “ a contradança obedecia ao protocolo e a valsa perdia de vista o equilíbrio europeu.”

Nesta casa solarenga veio a habitar, a partir de 1826, o rico negociante inglês John Fletcher, com o seu sobrinho Alfred Howell, que teriam vindo para Portugal na intenção de descobrir o galeão espanhol S. Pedro de Alcântara, afundado ao largo de Peniche com um carregamento no valor de 70 milhões de cruzados. Entre os seus íntimos contavam-se Bulhão Pato e o opulento negociante João Paulo Cordeiro, acérrimo miguelista e chefe duma quadrilha de caceteiros.

Fletcher, dandy de alto gabarito, marcou a Lisboa dessa época com os seus requintes e excentricidades, frequentando salões, as óperas de S. Carlos, corridas de cavalos e tabernas, deixando fama e saudades no palácio das Laranjeiras do seu amigo Conde do Farrobo.

Foi director da Assembleia Estrangeira, onde na noite de 24 de Julho de 1833, data da entrada do Duque da Terceira em Lisboa, se deu um faustoso baile em que todas as senhoras se apresentaram de azul e branco.

No palácio do Manteigueiro existiu durante catorze anos ( a partir de 1837) a Assembleia Lisbonense ou Assembleia da Horta Seca, o mais reputado centro da plutocracia e da alta política que constituíam a nata dos partidários da “Carta”. O seu presidente era o Conde do Farrobo, o vice-presidente Francisco José de Almeida, e entre os seus categorizados elementos encontravam-se José da Silva Carvalho e Rodrigo da Fonseca, o “Raposa”.

Em 21 de Novembro, festejando a inauguração, foi dado o primeiro dos muitos memoráveis bailes sob a égide da Assembleia. Marcaram presença assídua nessas festas os Fronteiras, Palmelas, Farrobos, Villa Reis, Ficalhos, Terceiras, Braacamps, e muitas vezes a própria Rainha D. Maria II, D. Fernando, a Imperatriz - duquesa viúva de D. Pedro, além de visitantes ilustres como o general Pourcet de Fondeyre e Sir Charles Napier, Conde do Cabo de S. Vicente.

A casa da Horta Seca também serviu de residência ao Conde da Torre e foi pertença do Visconde de Condeixa, João Colaço de Magalhães Velasques Sarmento, de grande distinção de maneiras e opulento capitalista.
Terá sido o seu filho segundo o mais marcante morador do Palácio.

De seu nome Jerónimo Colaço de Magalhães da Gama Moniz Velasques Sarmento Alarcão Bulhões de Sande Mexia Salema, vulgarmente conhecido por Jerónimo Colaço ou Jerónimo Condeixa e, em Paris, por Mr. De Magellan, foi um excêntrico elegante e um galã audacioso, para quem a vida era uma eterna estroinice.

Frequentou o Chiado com uma constância pertinaz e tinha poiso certo na pastelaria Baltresqui. Amigo de Eça de Queirós e de Ramalho Ortigão, o primeiro viria a “biografá-lo” elegantemente sob o célebre personagem Fradique Mendes, fazendo as delícias do grande público dessa época.

O simpático peralta conseguiu interessar os principais literatos do seu tempo e, depois de Beldemónio, dedicou-lhe Ramalho, em homenagem póstuma, palavras de saudade que acompanhou de um rápido perfil, no qual sobressai a maneira de trajar do elegante: sapatos de bico, calças justas, chapéus arqueados, bengala de castão de prata, anéis ingleses de enormes pedras, grande botão solitário de uma pérola preta, rodeada de brilhantes, no peito da camisa de baile.

Júlio Dantas desenhou esta estranha figura, alinhando-a com Almeida Garret, Paiva de Araújo, Henry James e Richard Brown, retatando-a desta maneira:

“ Foi em Paris o modelo da elegância luminosa que se compraz nas cores vivas, nos tons quentes, nos coletes cor de fogo, nas caças gris- perle, nas lapelas de sedas floridas de grandes camélias vermelhas, e amou com o mesmo brilho com que se vestiu, fazendo de cada aventura uma alta comédia e sorrindo das próprias paixões que despertava, como se o amor fosse apenas para ele uma espuma leve de champagne.”

Jerónimo Condeixa possuía um mail-coach tirado a quatro cavalos que causou assombro em Lisboa. Conhecia de cor a volta que dava diariamente às quatro da tarde, de S. Roque à Patriarcal Queimada, descendo ao Passeio Público, e da Baixa entrava no Chiado, fórum da elegância e da maledicência citadinas.

A sua presença “alvoroçava a pacatez lisboeta e acordava as nossas ruas áfonas” e as guizeiras da carruagem, em desrespeito pelas posturas policiais, “obrigavam os caixeiros a correr às portas das lojas e as cabecitas femininas a assomar às janelas dos andares.”
Como todos os grand-seigneurs, Jerónimo Colaço fez vida larga em Paris, que deslumbrou com as suas gravatas, as suas jóias e as suas amantes. Também viveu no Rio de Janeiro e as suas camisas iam a engomar a Londres.
Morreu em Paris, em Janeiro de 1884, com 39 anos.

Com a República, o Palácio veio a servir de moradia particular do Presidente Manuel de Arriaga, um poeta, um místico, um sonhador. Pouco tempo ali residiu, já que lhe foi afinal consentido ocupar um anexo ao Palácio de Belém, com entrada pela calçada da Ajuda, para onde se mudou em Junho de 1912.

Em 1877 o Palácio do Manteigueiro havia sido transmitido a D. Maria Ferreira das Neves, pertencendo mais tarde a João Ferreira Gonçalves, negociante abastado, e, em 1908, tornou-se proprietário do solar da Horta Seca Arnaldo Machado Fernandes.

Em 1920, a Vacuum Oil Company (Mobil Oil Portuguesa, a partir de 1955) com sede em Nova Iorque, adquire o Palácio, fazendo significativas obras de ampliação, dirigidas pelo engenheiro da companhia, o Visconde de Assentiz.


Depois, até aos nosso dias, estiveram sedeados no Palácio do Manteigueiro, sucessivamente, os governantes portugueses das áreas da Indústria, da Economia e do Ambiente e do Ordenamento do Território.

Os espectros de mais de dois séculos habitam o solar com as poeiras da história, os seus momentos de prazer, apetites não satisfeitos, despeitos, paixões, sentimentos feridos, amores e desamores, deslealdades, exotismos, traições, subterfúgios, atropelos, vinganças, recordações, decisões governamentais, heroicidades, sombras e mistérios.



Mário Costa ( c/lourençobravo)