20.9.04

RELANCE É COM EÇA

" Tinha muita lição de livro mau donde sacava virtuosas parvoiçadas, mas habitava nele um gosto depravado pelo fadinho e um justo amor pelo bacalhau de cebolada"

" E agora volvamos os olhos para Portugal. Em Portugal nessa época, não vejo que se passe coisa alguma, a não ser que o Ministério Cardoso Torres acaba de declarar que o seu programa será: Ordem, Moralidade e Economia.

É pois nesta serena e calma unidade nacional que Alípio Abranhos aparece e entra a passos largos nos umbrais da História.

A maneira como Alípio Abranhos foi eleito deputado parece inteiramente providencial. O Ministério Cardoso Torres tinha, como é sabido dos que conhecem a história política dessa época, dissolvido as Câmaras. O Ministério antecedente, denominado Ministério Bexigoso ( de cinco ministros, coincidência singular, três eram picados das bexigas ) não caíra segundo os métodos parlamentares: aluíra, sumira-se.

Em plena maioria, sem razão, sem discussão, de repente, desaparecera - caso singular, depois muitas vezes repetido, e comparável à conhecida catástrofe da corveta Saragoça. A Saragoça, num dia delicioso de Junho, num mar tão calmo como uma larga taça de leite, sem borrasca, sem vento, caiu no fundo do mar. O casco, parece, estava tão podre que se dissolveu como açúcar numa xícara de chá. Um indivíduo que estava na esplanada vendo-a dar uma curva magnífica sob um sol resplandecente, abaixou-se para atar um atilho do sapato, e, ao erguer-se, não viu mais a corveta: sondou ansiosamente com o óculo o horizonte azul - ferrete; olhou aflito em redor, pela praia; mesmo num gesto grotesco mas muito naturalmente instintivo, apalpou sofregamente as algibeiras: - nada! O mar brilhava sereno, azul, imóvel, coberto de sol.

O Ministério Bexigoso acabou como a corveta Saragoça. O novo Ministério foi portanto tirado do mesmo grupo da maioria - e, consequentemente, dissolveu as Câmaras, precaução exagerada, porque os chefes da maioria afirmavam ao ilustre Dr. Cardoso que dariam ao novo Governo - se ele, como o Governo anterior fosse pela Ordem, pela Moralidade e pela Economia - um apoio eficaz e homogéneo.

Razões facilmente compreensíveis determinaram o Dr. Cardoso Torres a persistir na dissolução - tanto mais que no primeiro Conselho de Ministros, o Dr. Cardoso e os seus colegas, conferindo a lista de parentes, amigos e notabilidades que desejavam fazer entrar na Câmara, reconheceram que necessitavam de vinte e três círculos, e que havia apenas, presentemente, quatro vagaturas. E como, além disso, esses vinte e três indivíduos eram geralmente homens de ilustração, de respeitabilidade, de boas letras e de fortuna, a dissolução era justa.

S. M. concedeu - a - o que produziu aquele artigo célebre do Estandarte, jornal do Governo dos Bexigosos, que ameaçava S. M. com a sorte de Luís XVI ou de Carlos I - exactamente oito dias depois do artigo em que o mesmo jornal comparava S. M. , pelas virtudes, a Tito, pela justiça, a S.Luís, e pelo respeito da Constituição, à Rainha Vitória!

A resposta do Globo, jornal do Dr. Cardoso Torres, foi enérgica: dizia que só se podia responder com um chicote a um jornalista que ameaçava com o cadafalso S. M., que, pelas virtudes, estava muito acima de S. Luís e, pelo respeito à Constituição, era incomparavelmente superior a Sua Graciosa Majestade a Rainha Vitória - eloquente artigo e que apareceu exactamente quinze dias depois de outro, violento, em que, então na oposição, o redactor do Globo, inspirado pelo Dr. Cardoso, dava claramente a entender que o fim provável de S. M. seria a guilhotina de Luís XVI, ou pelo menos o cadafalso de Carlos I ! "

E. de Queirós


brunv